São sete e meia de uma noite fria e úmida em Paris. Eu e meu amigo Affonso estamos assustados com a fila gigantesca na frente do ginásio de Bercy, em Paris, onde vamos assistir o show de Paul McCartney.
O ginásio, com capacidade para 17 mil pessoas, parece pequeno para acomodar aquele povo todo, mas de algum modo parece que todos entraram. Já lá dentro, mais relaxados por saber que o início do show tinha esperado por nós, pegamos uma cerveja cada um e aguardamos o grande momento.
A iluminação do palco é acionada e o público alvoroçado começa a aplaudir. Mas ainda não. Ainda não é ele. O telão começa a projetar imagens fantásticas, mistura de fotos, ilustrações e vídeos de Paul, Beatles, Wings... Era apenas uma introdução, prenúncio luxuoso do que estava por vir.
Pouco depois das 9 da noite sir Paul McCartney e sua banda maravilhosa entram no palco. Estamos tão próximos a eles que é difícil de acreditar que não estamos sonhando.
Eles abrem o show com “Magical mystery tour”, com imagens coloridas e fractais no telão de fundo, que ao longo do show se prova um espetáculo à parte. E é claro, nós todos embarcamos na viagem. Carrões em alta velocidade surgem na tela e eles emendam em “Drive my car”, numa versão super dançante, seguida de “Jet”, que mantém o astral lá em cima e nossos pés impossibilitados de ficar no chão.
Paul então vem ao microfone para dar boa noite a Paris. Sua simpatia e o inequívoco bom humor nos fazem lembrar que estamos diante de Paul McCartney. Do beatle Paul McCartney! Isso pode parecer uma bobagem para outros mortais, mas para mim, não. Para mim e para as outras 16.999 pessoas em Bercy naquela noite esse era um momento único na vida.
E mesmo sendo um beatle, mesmo já tendo tocado para milhares de pessoas, aquele parecia ser um momento especial para Paul também. Ele pede um minuto para olhar para o público, dizendo que aquilo é tão bacana que ele quer olhar bem para guardar na memória. Bercy vai ao delírio.
A música seguinte é “Only mama knows”, a minha preferida do último disco, “Memory almost full”, e me faz lembrar do amigo mais beatlemaníaco que eu tenho, Ricardo, que me pediu que pensasse nele quando tocassem essa canção. É nessa hora também que eu finalmente consigo prestar atenção na banda. E como é boa essa banda! Os arranjos estão super rock n’roll e isso vai ficando cada vez mais evidente na medida em que o show avança com “Flaming Pie”, “Got to get you into my life” e “Let me roll it” que termina emendada em “Foxy Lady”, a primeira homenagem da noite. Paul conta que quando viu Jimmi Hendrix tocando essa música ficou alucinado com sua performance na guitarra e que depois de tocá-la Hendrix foi ao microfone e perguntou “Eric está por aí?”, referindo-se a Eric Clapton, que estava lá e se escondeu.
O show desta noite estava recheado de homenagens. Ele dedicou “My love" a todos os “amoureax”, dizendo que escreveu essa canção para Linda, mas que ficava feliz de dividi-la com outros apaixonados. Antes de cantar “Blackbird” ele fala sobre as discussões sobre os direitos humanos com relação ao preconceito racial na década de 60, contando que escreveu a música naquela época e que ela fala sobre a esperança mesmo nos momentos mais sombrios.
Ele homenageou também de maneira sublime a França, Paris e os franceses. Incluiu no setlist a canção “Michelle”, acompanhado de um acordeon que não poderia soar mais francês e imagens da Torre Eifel sob a lua cheia no telão. E anunciou de maneira engraçadíssima – “Nunca toquei essa música na França. E ela é em francês!” – “Obladi Oblada”. Até os franceses riram!
Mas as grandes homenagens da noite foram para os Beatles. A primeira delas para a banda em si. “Got to get you into my life” levou as pessoas ao delírio mostrando no telão as animações dos Beatles para o jogo RockBand. A segunda homenagem foi para John Lennon. Paul emociona a todos ao dizer que às vezes os momentos passam e não dizemos às pessoas que as amamos e anuncia em francês “Essa música é para meu amigo John. É como se fosse uma conversa que poderíamos ter tido.” e toca “Here today”.
A homenagem mais bonita da noite, porém, foi a que ele fez a George Harrison. Antes de sequer anunciar qual seria a canção, Paul foi aplaudido por vários minutos ao dizer em francês que aquela música era dedicada a George. Com um ukelelê nas mãos, ele conta que George tocava o instrumento como ninguém e faz uma imitação engraçada do amigo tocando velhas canções americanas, dizendo ainda que aquele ukelelê tinha sido um presente de George para ele. E então, sozinho no palco, Paul começa a tocar “Something” de maneira leve e divertida. Essa música é tão incrível que sozinho no palco, fazendo graça com o ukelelê, Paul consegue fazer a música crescer e envolver todo o público, que chega no auge da canção cantando a plenos pulmões em uníssono “I don’t know, I don’t know”. E sem que a gente nem perceba a troca de instrumentos, a banda volta ao palco, Paul pega um violão, a guitarra começa o clássico solo da música e o telão projeta imagens incríveis de George Harrison em vários momentos da vida, sozinho, com os Beatles, cabeludo, jovenzinho, fotos dos dois juntos em situações de muita cumplicidade, fumando, no estúdio... O arranjo da música fica tão grandioso com a entrada de coros, guitarras e violões que deixa as pessoas emocionadas. E eu vou às lágrimas, claro.
As canções dos Beatles, obviamente são as que mais comovem as pessoas. Mas existem canções que são verdadeiros hinos, como “A day in the life”, que Paul junta com outro hino, nova homenagem a John Lennon, “Give peace a chance”. Os franceses cantam o refrão com as mão para cima, dedos em V, enquanto o telão projeta o símbolo de paz e amor. Pura catarse.
Mas eu não pude deixar de me perguntar – e a homenagem a Ringo? Será que o Macca só faz homenagens a Beatles falecidos? Pobre Ringo...
Ninguém parece preocupado com isso, claro. Fica difícil mesmo pensar em qualquer outra coisa diante de um show tão bem montado, com um setlist irretocável e momentos clássicos e super esperados, como os em que Macca vai para o piano, que fica no alto do palco, onde todos conseguem vê-lo tocar. Até eu, com menos de 1,60m de altura! É realmente viver um sonho ver um show de Paul McCartney com toda essa qualidade e conforto. E meu ingresso de pista era o mais barato de todos os lugares disponíveis no ginásio porque era em pé. Inacreditável.
E toda vez que ele subia ao piano, antes mesmo de começar a tocar, o público ficava em polvorosa. Não era à toa. “The long and winding road" foi a primeira ao piano, que ele emendou com uma canção inédita e linda, “I want to come home”, trilha sonora de um filme com Robert De Niro, que ficamos loucos para assistir, de tão bonitas que eram as imagens do filme mostradas no telão. Esse foi um momento bem romântico do show. Depois de dedicar “My love" à Linda e aos apaixonados, Paul deixa o piano fazendo um coração com os braços sobre a cabeça. Todos riem. O amor, para Paul McCartney é motivo de alegria, não de tristeza.
Apesar do telão de altíssima fidelidade, o show parece ser um espetáculo simples. O palco não é particularmente complicado. A iluminação é elaborada mas nada muito grandiosa. Paul está vestido de forma elegante, usa suspensórios. Mas é o Paul McCartney de sempre, sem firulas. E mesmo a banda sendo numerosa, nada chama muito a atenção. Nos minutos finais do show, porém, a coisa fica espetaculosa, sim. “Live and let die”, a penúltima canção antes do bis, é executada de maneira clássica com seus arranjos elaborados e ricos. Uma explosão de fogos de artifícios no meio da música chega até a assustar o público, que não esperava um show pirotécnico dentro de um ginásio fechado. As pessoas mal recuperam o fôlego e ele começa “Hey Jude”. Catarse novamente. Sir McCartney sai do palco ovacionado. O público não arreda o pé. Todos sabem que vai ter mais.
Ele na verdade volta mais duas vezes. Toca no primeiro bis “Day Tripper”, “Lady Madonna” e “Get back” e na segunda entrada “Yesterday”, “Helter Skelter” numa versão heavy metal que faz a gente chacoalhar a cabeça como se não houvesse amanhã, e “Sgt. Peppers” emendada em “The end”, que finaliza o show. Um final emocionante. As pessoas aplaudindo sem parar, enquanto aquele jovem senhor, depois de quase 3 horas de apresentação, aos seus 67 anos, corre de um lado ao outro do palco com as mãos levantadas, parando no microfone de vez em quando para fazer piadas como “Está na hora de eu ir pra casa. Aliás, está na hora de VOCÊS irem pra casa, não acham?”.
Ele não voltou mais e a gente teve que ir pra casa mesmo. Quando as luzes acenderam, as pessoas pareciam borboletas. Todos pareciam flutuar. Se esse fosse um filme de Woody Allen, nessa hora todos os personagens iriam para a casa voando. A gravidade, assim como a idade, são supérfluos absolutamente ignorados no universo de Paul McCartney. Obladi, oblada, life goes on, la-la-la-la life goes on!